Brasil acumula prejuízos com o abandono de ferrovias

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Passageiros têm tímida participação de 6% no sistema ferroviário, que, tradicional, já desenvolveu municípios, sendo mais barato e menos poluente

Era para ser uma audiência daquelas bem formais em Brasília. Sobre projetos de ferrovias. O esperado era se falar de investimentos, concessões para cargas, tudo dentro do senso comum.

Mas, ao subir na tribuna, um dos participantes quebra o tom protocolar e, durante seu discurso, emenda, em alto e bom som, uma frase que soou como uma chicotada no ar: “Quem dos senhores já andou de trem no Brasil?”

Diante da tímida e quase nula resposta, ele vai além, explicando que não se trata de trem de subúrbio, mas daqueles das antigas, que cortavam morros, campos e cidades, ligando estados e regiões de um país continental e cheio de esperanças. Hoje, o sonho de interligar todos os cidadãos do Brasil por trilhos está interrompido.

A ferrovia de passageiros está cada vez mais abandonada. Virou tema de museu de várias cidades cujo passado se relaciona a esse tipo de transporte, como Indaiatuba, Sorocaba, Jundiaí e Juiz de Fora.

Atualmente, os passageiros têm a tímida participação de 6% no sistema ferroviário brasileiro e estão sendo deixados de lado, conforme conta o doutor em engenharia, José Manoel Ferreira Gonçalves, presidente da entidade Ferro Frente, voltada aos usuários de transporte sobre trilhos. Foi ele quem discursou na tal audiência na capital federal.

“Há muitos equívocos nas escolhas políticas e enorme incompetência para lidar com a realidade. Isso tudo junto levou à situação em que se encontra o sistema hoje, precário, subutilizado, abandonado”, afirma o engenheiro.

A presença inglesa no início

A história da ferrovia no Brasil está associada ao próprio desenvolvimento do País a partir do século 19. As concessões eram de 90 anos, três vezes mais longas do que as atuais. E havia incentivos aos investidores, que atraíram empresas inglesas que se instalaram no Brasil, como a SP Railway e a The Recife and São Francisco Railway Company.

A presença inglesa foi estimulada pela atuação de empreendedores, como o Barão de Mauá (Irineu Evangelista de Souza) e Percival Farquhar. Durante a República Velha (1889 a 1930) o País chegou a ter 29.000 quilômetros de ferrovias, boa parte delas de passageiros. O Brasil, em 2017, tinha 30.600 km de ferrovias, segundo o então Ministério dos Transportes.

Essa queda do número proporcional de ferrovias ocorreu muito em função da mudança de modal de transporte no País, a partir do governo de Getúlio Vargas, que assumiu em 1930. Desde então, priorizou-se a indústria automobilística e a construção de rodovias.

“Quem mais se beneficiou com a diminuição do sistema ferroviário foram a indústria automobilística, os fabricantes de caminhões e ônibus e a indústria dos transportes sobre pneus, geralmente sem licitações”, completa Ferreira Gonçalves.

As ferrovias não são o meio mais utilizado até mesmo para o transporte de cargas, que tem crescido e renovado concessões, chegando aos atuais 15% no Brasil segundo a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres).

Curiosamente, os próprios países que sediam as grandes montadoras de veículos, como os Estados Unidos, não priorizam para si o sistema rodoviário como meio de transporte.

Para cargas, 43,3% dos produtos são transportados por ferrovias, que ocupam o primeiro lugar na lista, seguidas pelos caminhões e automóveis.

Vantagens das ferrovias

O transporte de cargas também se sobrepõe ao de passageiros por ser considerado mais rentável. Antes, até os anos 30 do século passado, havia subsídios públicos para o transporte de passageiros no Brasil. As empresas se endividaram e foram estatizadas, com a criação da RFFSA (Rede Ferroviária Federal) em 1957. O transporte de passageiros foi minguando ano a ano.

Tal fenômeno caminha no sentido contrário às atuais necessidades de um país que busca cortar gastos e aumentar a eficiência.

Estudo de 2014 da professora doutora Rosângela Motta, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, aponta que as ferrovias propiciam maior confiabilidade e segurança; menor impacto ambiental na construção e manutenção; maior conforto e possibilidade de alta velocidade; menores emissões de poluentes; menos ruído e vibração; menor consumo de combustível; maior segurança; uso mais racional do espaço e contribuem para a diminuição do trânsito e de congestionamentos nas estradas e nos espaços urbanos.

O instituto americano VPTI (Victoria Transport Policy institute) fez um levantamento que apontou que o número de mortes no trânsito é muito maior do que em ferrovias. As motos ficaram com uma média de 212.57 mortes em bilhões de passageiros por milha. Carros ou caminhões ficaram com 7.28 e no sistema ferroviário americano a proporção baixou para 0.43.

Nos anos 90 foram retomadas as privatizações no Brasil, mas os problemas não foram resolvidos, apesar de um incremento na malha ferroviária voltada ao transporte de cargas. Hoje, há 12 concessões no Brasil, conforme confirma Ferreira Gonçalves. Uma das mais importantes, a da Malha Paulista, controlada pela empresa Rumo, está prestes a ser renovada por mais 30 anos.

A empresa diz que pretende investir R$ 4,7 bilhões neste trecho, importante para o escoamento de grande parte da produção agrícola de Mato Grosso até o Porto de Santos. E tem intenção de adquirir 196 locomotivas e 2.575 vagões e mais do que dobrar a carga transportada (hoje de 35 milhões).

Ferreira Gonçalves lamenta que existam tão poucas exigências do poder público em relação ao transporte de passageiros. Antigas estações hoje estão em ruínas. Os trilhos, enferrujados pelo descaso. As bitolas, tão soltas e expostas ao vento quanto as palavras dos políticos, levadas por ele até se perderem e caírem no esquecimento.

“Em termos de transportes de passageiros sobre trilhos, o que temos é muito pouco. E tivemos ferrovias e trens de qualidade, com vias eletrificadas inclusive. Como pode, hoje, o Brasil, um país continental, não ter um sistema de trens para passageiros? É inadmissível, já que isso é algo básico em países da Europa e outros continentais.”

Em nota para o R7, a Rumo argumentou que não tem essa atribuição.

“A Companhia informa que sua área de atuação é voltada para o transporte ferroviário de carga, não operando, seja regular ou eventualmente, o transporte de passageiros. Porém, a empresa não se contrapõe as solicitações para que um trem turístico possa operar no seu trecho de concessão, desde que todas as normas/legislações de segurança da operação sejam seguidas. É importante destacar ainda que a circulação de trens para esses fins só pode ser feita com autorização da ANTT.”

Testemunha de uma época

Nos EUA, que possuem cerca de 230 mil km de ferrovias operacionais, em 32 mil km são operados trens de passageiros. Muitas cidades americanas ainda estão ligadas às ferrovias, como acontecia há algumas décadas no Brasil.

Quem testemunhou essa fase foi o sr. Elisaldo Alves, de 75 anos, que trabalhou em estações ferroviárias entre 1966 e 1993, em Garça e em outras cidades do interior paulista, passando de operário a auxiliar de conferente e chefe de estação, antes de se aposentar. Ele lembra com carinho daqueles tempos, que pareciam eternos.

“Éramos felizes e não sabíamos. Era um serviço que eu fazia com prazer. Além de gostar da ferrovia, minha família também era de ferroviários, meu pai, meu irmão, meu tio e um primo.”

Hoje morando em Garça, o som do trem nos trilhos ainda se mantém presente em sua mente. E todo o burburinho que a ferroviária gerava. Clubes de futebol, como a Ferroviária, de Araraquara, nasceram em função deste tipo de transporte, esta tendo sido fundada por um grupo de engenheiros e servidores da EFA (Estrada de Ferro Araraquara).

“A ferrovia era o ponto de desenvolmento de  todas as cidades. Podíamos notar que as cidades cresciam em volta dela. Construir perto era grande privilégio de todos. Os trens de passageiros eram o transporte preferido de todos, além de ser mais barato. Era mais confortável. Passageiros se deslocavam de um carro para outro. Além disso, havia carro-restaurante. Na época da Cia. Paulista os trens não tinham atrasos nos horários. Após passar para Fepasa (estatal paulista, atuante entre 1971 e 1998) começaram os atrasos, devido à falta de manutenção em todos os setores”, conta o sr. Elisaldo.

No rastro da saudade do sr. Elisaldo, Ferreira Gonçalves acrescenta que, com boa vontade, a malha ferroviária poderia novamente ser adaptada para passageiros. Assim como as próprias ferrovias, que propiciariam um custo ainda menor do que a construção de estradas, por exemplo.

“(A linha) Carajás (uma das poucas voltadas a passageiros) gasta mais de R$ 1 bilhão por ano com diesel. Para eletrificar, seriam aproximadamente R$ 2 bilhões no total. As locomotivas do Brasil já são de motor elétrico (até os anos 30 eram a vapor). Quem gera essa energia é um motor diesel localizado atrás do maquinista. Retirando-se o motor diesel e colocando um transformador de tensão a adaptação é possível, sem jogar nenhuma locomotiva fora”, analisa.

Não deu para Ferreira Gonçalves passar essa ideia na audiência. O tempo da fala se esgotou e todos tinham de voltar para suas cidades. Iriam pegar o carro, aumentando o congestionamento até o aeroporto distante. Bom seria se pudessem ir a uma estação próxima para pegarem um trem. Pela primeira vez.

Fonte: R7 

Texto e foto: Eugenio Goussinsky

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